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O que é música?

Música é a capacidade de ouvir. Você pode ser Mozart, mas se não houver quem escute sua obra, ela não existirá. Ninguém compõe para as altas esferas, mas para que o som se propague até um receptor. A música foi assassinada quando descobriram a mina de ouro que é a banalização da batida do tambor. A sofisticação foi reduzida ao pó das baterias, e o tunc tunc se consolidou na indústria imediatista. Mais tarde, "evoluiu" para o baticum eletrônico, que é a entronização surtada da redundância.

Tudo o que música produziu, como melodia, harmonia, ritmo, foi deixado de lado para que imperasse a obsessão pelo Mesmo. O eterno presente, que devora a memória, precisa de reiteração permanente. O entorno dessa barbárie é a parceria gritada de duplas infernais. É preciso atordoar os ouvintes até que não reste uma nesga de civilização auditiva. A vítima então está pronta para digerir o atordoamento interminável. O objetivo é fazer destruir a capacidade de ouvir. É o assassinato implantado da música.

Ouvir significa sonhar, pensar, aprender, enlevar-se, transcender. Tudo isso não serve para nada, pois é preciso que a linha de montagem obedeça aos ditames do entretenimento doentio. A coletividade injeta nos tímpanos a mais intensa avalanche de porcarias auditivas. Dá para perceber de longe. Os ouvidos estão cobertos por grossa camada de fuligem. É para enlouquecer, mesmo, já que pessoas saudáveis seriam incapazes de se submeter ao matadouro cultural.

Nos supermercados ou lojas onde você cai na asneira de entrar, existe a distorção pop de vozes intermináveis, que se esganiçam até o osso. Você está louco para fugir dali, mas não sabe por quê. Aí descobre que é a monstruosidade despejada pela caixinha de som, construída pelo horror de DJs invisíveis, mas mortais. E não ouse reclamar. O sorrisinho maroto de que você está por fora irá se manifestar.

O que resta para as pessoas que conservam um mínimo de lembrança da cultura musical? Num restaurante de bom gosto, num concerto fino, numa sala de espera de luxo, eis que chega até nós os acordes da bossa nova, do jazz, do blues, ou mesmo da música sinfônica, erudita, romântica, barroca. São pílulas caras, pois cobram os tubos para você compartilhar um pouco do que restou, as ruínas desse acervo popular maravilhoso, que sumiu do mapa e hoje está enterrado no coração sem esperança.

Se você tem a coleção completa de Frank Sinatra, Tom Jobim ou Doris Day (sim, ela é o máximo de doçura na voz), de Pixinguinha, Baden Powell ou Maysa, se você gosta de Brahms ou Edu Lobo, então você está condenado a escutar bem baixinho, nos intervalos da guerra. No fundo, você continua preso. Jogado dentro de uma cela por inúmeros malfeitores, como o Ruído e o Gritalhão, é como se houvessem decretado a pena de morte. Mas ainda é possível ganhar dois minutos no pátio para tomar sol. Lá, você respira fundo e consegue lembrar aquela frase musical perdida. Do tempo em que você escutava. Quando havia música.

Por que perdemos a capacidade de ouvir? Porque entregamos o país para a bandidagem, e isso foi há mais de quatro décadas. Quando abrimos mão do Brasil soberano. Quando achamos que poderíamos viver sem a música a feita por nós, e pelo melhor dos estrangeiros. Que deveríamos nos entregar para sempre nas mãos de quem domina o espaço público e loteia nosso ouvido como se fosse um terreno abandonado.

Nei Duclós, Crônica publicada no dia 20 de maio de 2008, no caderno Variedades, do Diário Catarinense.